Os homens conquistam a lua, o grande deus Kamayurá

(Escrita no Xingu para o Jornal da Tarde, publicada em 21 de julho de 1969, quando os primeiros homens chegaram à Lua)

A Lua não é a Lua. Para os Kamayurás, ela é Yaí, o poderoso deus que criou e deu força aos homens. Os Kamayurás, que vivem no Parque Nacional do Xingu, em cinco grandes malocas, são filhos diretos de Yaí. A Lua também lhes deu o arco, a flecha e a sabedoria para a caça. Depois, ela subiu para os céus, seguida por espíritos maus e animais selvagens. Quando há eclipse e escurece a Lua, os Kamayurás rezam por seus mortos.

Hoje, os índios Kamayurás, do grupo Tupi, não vão rezar para Yaí, a lua. Eles nem mesmo cantarão para ela, como ensinou o bravo Araútará, o único índio que chegou ao céu e voltou para contar a seus irmãos o que viu. E Araútará os ensinou a cantar, durante os eclipses, para afastar de Yaí aqueles maus espíritos e animais selvagens.

É por causa desses animais e dos maus espíritos que os Kamayurá não cantam ou rezam hoje. Para que eles não se afastem do céu. Porque são eles que vão defender Yaí, a lua, dos caraíbas, os homens brancos.

– E os caraíbas não vão nunca voltar de lá.

É o que dizem os dez pajés Kamayurás. É o que diz Wahú, o grande pajé. Os índios da tribo não cantam ou rezam hoje, mas os seus pajés vão se reunir como se reúnem todos os dias para falar de Mautsiní ou Kwat, o sol, e de Yaí a lua.

– Quando o sol estiver assim, a reunião começa.

Para Tuvulé, o cacique, quando o sol estiver assim, e ele mostra um ponto no céu, significará que a noite está chegando, que o sol começa a esconder-se atrás das águas do grande lago que fica ao lado da aldeia. Quando sol estiver assim, os pajés sairão de suas malocas, prepararão seus grandes cigarros; depois, ao lado do cemitério, que fica no meio do círculo formado pelas malocas, cercado por vários pedaços de madeira pequenos, eles se sentarão ali e começarão a relembrar, enquanto fumam, as suas histórias – as histórias dos caraíbas, os homens brancos, e dos Kamayurás. Estas são também as histórias do sol e da lua, os seres que criaram os homens.

* * * * *

Foi no tempo em que os bichos eram gente. E o onça tinha duas mulheres, que eram duas irmãs. Uma delas estava esperando criança, e por isso não trabalhava, enquanto a outra ia para a roça, com o marido. Um dia a mãe do onça perguntou:

– Quem é que vai catar meus piolhos?

A mulher que esperava criança disse que ela faria isso, porque sua irmã e o onça não estavamem casa. Mas, ninguém sabe por que, as duas mulheres brigaram e a mãe do onça matou a mulher de seu filho. Depois fugiu para o meio do mato. Quando o onça chegou com a outra mulher, e os dois viram a morta, ele falou:

– Precisamos chamar a formiga para ela tirar a criança que ia nascer.

Vieram três formigas: Takutaku, Tanahã e outra, de que ninguém sabe o nome. Elas tiraram duas crianças da mulher do onça, antes que ela fosse enterrada, e as penduraram no teto da casa, em duas cestas. No outro dia, as cestas começaram a balançar e o onça chamou as formigas, para colocarem seus filhos no chão. As formigas vieram, desceram as crianças e mandaram o onça e a mulher para outro quarto, para que não as vissem.

– As crianças ainda não andam – disseram as formigas. – Por isso nós as penduramos outra vez.

Dias depois, quando voltaram da roça, o onça e sua mulher viram pequenas marcas de pés no chão da casa. – É das crianças – disseram – mas nós ainda nem sabemos se são homens ou mulheres.

No outro dia deixaram peneiras e colares no chão, para ver se as crianças pegavam. Não pegaram. O onça deixou então dois arcos e duas flechas, porque, se as crianças viessem buscá-los, ele saberia que eram homens. O onça se escondeu e ficou olhando: as crianças desceram, levaram os arcos e voltaram para buscar as flechas. Mas então o onça chegou e disse:

– Fiquem aqui no chão, que é melhor que nas cestas.

As crianças eram homens. Eles não voltaram para as cestas e o onça deu–lhes nomes: Tapé e Tapé–Akaná. Um dia os dois se encontraram com uma cigarra e ela lhes perguntou os nomes. Quando eles responderam, ela falou:

– São muito feios. De hoje em diante vocês se chamarão Kwat, o sol, e Yaí, a lua.

* * * * *

Os pajés, sentados no cemitério, estão ouvindo Wahú falar. Ele está com 45 anos agora. Seu pai, que era o principal pajé, tinha 85 e morreu há quatro meses. Ele se chamava Muriti, e a terra do pequeno cemitério ainda não escondeu os sinais de sua cova, onde ele foi enterradoem pé. Foi Muritiquem contou a Wahú todas as histórias, como esta que o filho repete agora.

Wahú é magro, alto, usa apenas um cinto feito de caramujos. Sua pele é muito escura, queimada de sol, seus cabelos pretos cortados em franjas desiguais, caídas na testa, quase escondendo uma ruga permanente entre as sobrancelhas, logo acima dos olhos muito puxados. Seus pés estão sempre arrastando no chão, como a limpá-lo, e isso forma um círculo à sua volta. Ele fala gesticulando, esticando as palavras, sorrindo.

* * * * *

Kwat, o sol, e Yaí, a lua, viveram com os pais durante muitos anos. Um dia os dois foram buscar amendoim na roça de um passarinho, e este veio conversar com eles:

– Vocês chamam de mãe a mulher errada – disse ele. – Sua mãe de verdade morreu há muito tempo. Foi sua avó quem a matou, e depois fugiu para o mato.

As duas crianças choraram muito, até que seu pai, o onça, veio perguntar o motivo do choro. Kwat e Yaí quiseram saber onde estava enterrada a mãe e, quando o pai mostrou, os dois começaram a cavar, chorando e gritando: – Mãe, mãe.

– Vocês não podem tirar sua mãe daí – disse o onça.

– Mas nós queremos que ela viva mais.

Quando os dois viram que a mãe não poderia voltar a viver, eles a enterraram outra vez, só que de outro jeito:em pé. Eas crianças cortaram muitos pedaços de madeira, que colocaram cercando a cova.

(– É por isso – diz Wahú – que até hoje os cemitérios Kamayurás são cercados de madeira, e nós enterramos nossos mortos em pé ou sentados.)

Kwat e Yaí quiseram fazer uma grande festa para a mãe morta, e chamaram um garoto que conheciam, para que ele fosse convidar os peixes. Alguém que vai convidar outra pessoa para uma festa é o pareat. O pareat foi ao Mirená, o paraíso, e convidou os peixes para a festa da Lua e do Sol. E os peixes começaram uma viagem de 10 dias até o lugar da festa. Dormiram em várias aldeias: no Maracutaví, no Yacaré e no Mariwahet, onde alguns desistiram da viagem e ficaram morando.

(– E é por isso que está dando muito peixe no Mariwahet – explica o pajé).

Um índio chamado Katsiní estava pescando na margem do rio que os peixes iam subindo para a festa. E ele ficou muito curioso, vendo todos eles nadando na mesma direção. Um peixinho de rabo vermelho, chamado ararapirá, virou-se para Katsiní e perguntou:

– O que você está fazendo?

– Estou pescando – ele respondeu.

– Você pensa que isso é peixe? – perguntou o ararapirá. – Isso não é peixe, é gente, e nós estamos indo para uma grande festa. Quer vir à festa também? Katsiní respondeu que não podia, que teria que avisar a família, se fosse. Ararapirá insistiu: – Vamos sem avisar mesmo.

Katsiní disse que não, não iria. Mas o ararapirá jogou um pouco de água no rosto de Katsiní e este caiu dentro do rio. Dentro da água, junto com os peixes, o pescador continuou a respirar como se estivesse na terra. E continuaram a viagem, juntos, para a grande festa.

* * * * *

São cinco malocas que formam a aldeia Kamayurá. Cinco malocas, com dez famílias em cada uma, e uma pequena casa, de palha, como as outras, e que fica em frente ao cemitério – é nesta casa que os Kamayurás se pintam para suas festas. Os 125 índios da aldeia vivem no Parque Nacional do Xingu, no Mato Grosso, a aproximadamente500 quilômetrosde Cuiabá e 3.200 de São Paulo. O Parque Nacional ocupa uma área de23.000 quilômetrosquadrados, em toda a região do Rio Xingu, e foi fundado por Leonardo Villas Bôas em 1961. Antes disso, porém, os irmãos Villas Bôas já andavam por aquela região, pacificando muitas aldeias de índios. Eles conhecem os Kamayurás há muito tempo, nem mesmo o cacique Tuvulé sabe dizer quantos anos.

– Quando eu nasci minha aldeia já estava aqui, perto do lago. E todos conheciam os Villas Bôas.

Tuvulé está com 25 anos. É um índio muito forte – as pessoas que procuram os Kamayurás para estudar-lhes a língua e os costumes dizem que é o mais bonito da região. A mulher de Tuvulé chama–se Yamuni, e eles têm duas filhas: Tamakut, de dois anos, e Kapanaí, de três meses. A pele de todos é escura, vermelha, muito mais vermelha pela mistura de pó de urucum e óleo de pequi, duas plantas que eles passam pelo corpo para evitar os mosquitos, do que pelo calor do sol.

O cacique Tuvulé não toma parte na reunião dos pajés, no cemitério, mas ele fica ao lado deles, escutando o que dizem.

* * * * *

Katsini, o pescador, e os peixes, continuaram sua viagem até que chegaram a uma grande cachoeira. Cari, um dos peixes, disse que conseguiria pular por cima dela. Preparou-se, deu um grande pulo, não conseguiu alcançar o rio, lá no alto, e caiu atrás de uma pedra.

(– Por isso – diz Wahú – os caris moram embaixo das pedras até hoje.)

Outro peixe veio, conseguiu abrir a cachoeira e todos passaram. Passaram por cinco cachoeiras e chegaram à aldeia de Kwat e de Yaí. Na noite em que chegaram foi organizada uma grande dança, e todos dançaram até muito tarde. Depois ficaram esperando, porque no dia seguinte começariam as lutas, que faziam parte das festas. Até hoje os kamayurás, em suas festas, lutam o oyuwetik, como os peixes fizeram na festa do Sol e da Lua.

E Yaí, a lua, foi o melhor de todos os lutadores. Os peixes evitavam lutar com ele, preferiram lutar com Kwat, o sol. Mas todos apanhavam dele também. Até que mwikapit, um dos peixes, desafiou o Sol. A Lua avisou seu irmão: – Cuidado com mwikapit, ele é perigoso.

Mwikapit bateu no Sol até que ele caiu desmaiado. Quando voltou a si, a Lua lhe disse que as lutas haviam terminado. As danças, porém, continuaram, e os peixes pintaram-se todos para elas, como ainda estão pintados até hoje. Depois que terminou a festa Kwat e Yaí resolveram criar os Kamayurás e os caraíbas – os homens brancos.

Os dois foram feitos com pedaços de madeira que o Sol e a Lua cortaram das árvores – os caraíbas foram feitos de madeira branca, os Kamayurás de madeira vermelha. Os outros índios do Parque – Txucarramãe, Kayabi, Juruna, Suyá e muitos outros – foram feitos de pedaços de cobra, e é por isso que eles furam os lábios e as orelhas.

O Sol e a Lua tinham um companheiro – Aganimaní – e este tinha inveja dos dois, porque não sabia fazer nada. Ele ficou com muita raiva dos caraíbas e dos Kamayurás. Depois que os brancos e os índios foram feitos, o Sol e a Lua trouxeram arcos, flechas, revólveres e carabinas e mostraram a eles.

– Escolham o que quiserem – disseram os dois aos caraíbas e aos Kamayurás.

Os revólveres e carabinas eram muito velhos e feios, e os arcos e flechas eram novos, pintados de preto. Foi por isso que os Kamayurás os escolheram, e os caraíbas ficaram com as armas de fogo.

(Por isso – diz Wahú – os brancos ainda usam revólveres e os índios usam arcos e flechas.)

Kwat e Yaí não ficaram contentes com os Kamayurás quando eles escolheram os arcos. Mas deram uma ordem aos caraíbas:

– Vocês vão para longe daqui, porque escolheram as armas. Os Kamayurás ficam, porque pegaram arco e flecha.

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Kwat e Yaí quiseram que os caraíbas e os Kamayurás não morressem nunca. E organizaram uma festa, que se chamou Kuarup, na qual fariam viver três pedaços de madeira, para que todos aprendessem a fazer a mesma coisa com as pessoas que morressem. Mas colocaram cocares e enfeites de penas nos pedaços de madeira, os mesmos enfeites que os Kamayurás usam agora. E os dois, Sol e Lua, começaram a cantar.

Os pedaços de madeira começaram a ganhar vida: mexeram a cabeça e os braços. E, como estava difícil, o Sol pediu aos Kamayurás que fossem para suas malocas, que eles iriam continuar sozinhos a dança. Quando os índios saíram, e a madeira já estava quase gente, Awanimaní, o companheiro de Kwat e Yaí, que tinha inveja deles, apareceu e estragou tudo. Ele chegou perto e as madeiras voltaram a ser o que eram.

(– Por isso – diz Wahú – até hoje ninguém mais volta depois de morto. E nós continuamos a fazer o Kuarup todos os anos, mas é só por sentirmos saudades dos nossos mortos).

Quando os Kamayurás começaram a comer carne, foram Kwat e Yaí que entraram na mata e trouxeram macacos e um pássaro chamado jacubi para eles. Assim começou a caça. Um dia, um índio que não conseguia caçar nada foi atacado por seus companheiros, porque ele só comia e não matava animais. Os Kamayurás cortaram os seus pés e suas mãos e o deixaram na floresta, para morrer. Yaí apareceu, colou os pés e as mãos no índio e o salvou.

(– Foi isso – conta o pajé – que fez com que a gente tenha juntas nos pés e nas mãos).

Mas, como naquele tempo os bichos eram gente, eles se revoltaram contra o Sol e a Lua, que os matava para os Kamayurá comer. O Sol e a Lua, então, fizeram um grande número de flechas, que espalharam pela floresta: eles iam transformar as flechas em gente e depois desaparecer da Terra. Levariam também, junto com eles, um grande número de animais selvagens, para protegê-los: levaram grandes caranguejos e sapos venenosos, onças bravas, uma grande cobra e muito gelo.

Um índio viu tudo isso: foi Arautará, o bravo. Ele vivia entre os Kamayurás e tinha um grande amigo; os dois fizeram um trato:

– O primeiro que morrer volta e leva o outro para ver como é.

O amigo de Arautará morreu e veio buscar seu companheiro em uma noite de eclipse. Levou-o vivo para o céu.

– Lá – contou Arautará quando voltou para sua tribo – existem muitos bichos e maus espíritos. Eles, durante os eclipses, atacam nossos irmãos que já morreram. Eu peguei uma grande taquara, fiquei batendo nela e espantei todos.

(– É assim a cerimônia que fazemos até hoje – conta Wahú, o pajé. – Pegamos o imuitotó, a grande taquara, e também um chocalho, e ficamos batendo neles, nas noites de eclipse, para afastar os maus espíritos e os animais que atacam nossos mortos. Hoje, os bichos e os espíritos estão atacando os caraíbas na Lua, e nós não cantaremos para que eles se afastem.)

* * * * *

Foi Orlando Villas Bôas, o sertanista, quem contou aos Kamayurás que os homens iriam pousar na lua. Os índios ouviram tudo em silêncio, até que Wahú falou:

– Os caraíbas não voltam de lá.

Maipu, o filho de Wahú, ouviu as palavras do pai. Mas afastou-se depois, porque para ele ainda não é tempo de conhecer essas histórias – Maipu tem apenas 16 anos. Ele só poderá saber de tudo quando os jovens de sua idade, na aldeia, estiverem preparando-se para casar. Então eles sairão com os pais, para aprender a caçar – diz Tuvulé, o cacique. – Maipu, antes disso, aprenderá a ser pajé.

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Kwat, o sol, e Yaí, a lua, espalharam as flechas pela floresta. Depois os dois começaram a subir, abandonando a Terra. E disseram:

– Flechas, transformem-se em índios. E apareçam os bichos.

Os animais, que eram gente, transformaram-seem bichos. Ehoje os macacos, os jucuaçus, as antas e os porcos do mato são caçados pelos Kamayurás, que também pescam todos os peixes.

– Kwat e Yaí, que são gente – diz Wahú – subiram para o céu. E estão lá, brilhando, até hoje.

(Aproximadamente um mês antes de chegar ao Xingu procurei o sertanista Orlando Villas Bôas em São Paulo e disse a ele o objetivo da reportagem: mostrar o que significava, para os índios brasileiros, a chegada do homem à lua. E o resultado foi esta lenda que, para os Kamayurás, explica a criação da vida no planeta depois do tempo em que os bichos eram gente.

A história me foi contada alternadamente por Wahú e Tuvulé, o cacique, parte à sombra de um grande pequi, em frente ao posto da FUNAI, parte na própria aldeia, ao lado do cemitério cercado por tocos de madeira fincados no chão.

Fui recebido lá por Cláudio, o terceiro dos Villas Bôas – Orlando chegaria mais tarde, dois dias antes de minha volta. Foram 10 os dias em que tive a felicidade de viver naquele fascinante mundo do Xingu.)